A “Bonequinha de Luxo” tinha a perturbação de personalidade histriónica?

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Já viu o filme “Bonequinha de Luxo”(Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards, 1961) e a   personagem de Holly Golightly, interpretada por Audrey Hepburn? Holly exemplifica o transtorno de personalidade histriónica. Ela é uma mulher que quer se tornar uma atriz, que leva uma vida louca e extravagante, e também é muito influenciável. Convence-se a si própria de que está apaixonada pelos homens que cruzam o seu caminho e faz da sua vida uma peça de teatro constante.

A Bonequinha de Luxo tinha a perturbação de personalidade histriónica?

Várias pessoas podem encaixar-se nessa descrição por serem dramáticas, sedutoras e influenciáveis, mas isso não significa que todas elas tenham um transtorno de personalidade histriónica. Nem mesmo os exemplos mais realistas, que pertencem ao nosso dia-a-dia, pessoas de forte expressividade emocional, as almas das festas que   animam grupos de amigos, e que polarizam atenções por onde passam. Para poder dizer que alguém possui uma perturbação de personalidade histriónica, é necessário que apresente cinco ou mais dos seguintes critérios:

  • Sente-se desconfortável em situações onde não é o centro das atenções.
  • A interação com os outros é frequentemente caracterizada por comportamentos sexualmente sedutores ou provocativos.
  • Apresenta mudanças rápidas e pouco expressivas das emoções.
  • Utiliza constantemente a aparência física para atrair a atenção
  • Tem uma forma de falar baseada nas suas impressões e carente de detalhes.
  • Demonstra dramatização, teatralidade e expressão exagerada das emoções.
  • É facilmente influenciada pelos outros ou pelas circunstâncias.
  • Considera os relacionamentos mais íntimos do que realmente são

A personagem Holly certamente atende a muitos destes critérios. Nem por isso deixa de ser uma pessoa extremamente sensível, doce, interessante e amada por aqueles que estão mais próximos de si. Às vezes, estamos diante de pessoas que não desenvolvem o  transtorno mas caracterizam-se por serem extremamente genuínas na forma de expressarem as suas emoções, motivadas, cheias de energia e entusiasmo.

A bonequinha de luxo era histriónicaO grande desafio, como na maioria dos distúrbios psicológicos , está na capacidade de  se evitar a tentação do rótulo fácil e do estigma que existe em torno da personalidade  histriónica. Holly era uma pessoa ingénua, sugestionável, e que tinha grande dificuldade em compreender os seus próprios valores de vida. Mesmo parecendo ser extremamente superficial e movida exclusivamente pelo interesse  material, despertou o amor do escritor, que se apercebeu que, pode debaixo de uma capa de fogo de artifício, residia uma pessoa genuína e capaz de afectos sólidos.

E atenção!  A perturbação de personalidade ou o perfil histriónico  não é raro (estima-se em quase 2% dos adultos) nem é um “privilégio” reservado as mulheres como muitas pessoas pensam! Durante séculos, o histrionismo era considerado um problema estritamente feminino. Hoje, percebe-se que a proporção homem-mulher desta perturbação de personalidade é idêntica à observada para a maioria dos problemas psicológicos/psiquiátricos, podendo, portanto , encontrar-se muitos  histriónicos entre os homens. Nos homens, esta perturbação pode apresentar-se com valências mais ligadas a papéis de estereótipos masculinos como o pai da década de 1950, o fanático por desportos, o contador de piadas ou executivos altamente motivados, os machões etc.    Com excepção de poder ter uns traços que, à superfície parecem diferentes, toda a construção de personalidade é a mesma, tal como são as mesmas consequências/dificuldades  relacionais.

Existe uma tradição cultural de ver  essas pessoas de um modo estereotipado. Quando homens , são taxados como tolos/mariolas/“don Juans “e quando mulheres como superficiais, promíscuas  ou vulgares.

A boa notícia : alguns comportamentos típicos da personalidade histriónica, quando presentes de forma ponderada, podem ser de extrema valia para o indivíduo.  Em várias momentos no filme vemos a doçura encantadora de Holly e a forma  despojada , criativa  e descontraída de encarar as situações novas. No entanto, quando presentes de forma exagerada  e recorrente,  alguns comportamentos causam sofrimento não só ao próprio, mas também àqueles que o cercam e nestas situações a psicoterapia é altamente recomendada .

E qual seria a intervenção psicoterapêutica recomendada para a nossa querida  personagem  a  “Bonequinha de Luxo”?

A terapia cognitivo comportamental poderia ajudar a Holly  a diminuir  o seu estilo de  pensamento difuso, auxiliá-la  para melhor distinguir as fantasias da realidade, como quando se iludiu que iria se casar com o nono maior milionário dos Estados Unidos!    Ajudaríamos Holly a buscar um maior controlo sobre os seus comportamentos impulsivos, um melhor conceito sobre si mesma , a aceitar a vida com mais realismo e a aumentar as suas competências de  estabelecer interações  sociais genuínas.

O treinamento em competências sociais  e em assertividade é fundamental para a melhoria da perturbação, já que são pessoas que estão acostumadas a manipular as suas relações interpessoais com crises emocionais (as famosas “crises histéricas”), queixas e outras atitudes não assertivas e, por vezes, até agressivas. Holly, por exemplo, manipulava a todos com quem interagia…

Uma parte importante da psicoterapia  é ajudar a pessoa a identificar o que quer, o que sente, o que a  incomoda e como expressá-lo adequadamente. Como parte deste  trabalho, o terapeuta questiona a sua crença de que a perda de um relacionamento seria algo desastroso e ajuda-a a perceber que a rejeição não é catastrófica.

Embora seja uma desordem que tem uma intervenção clínica complicada, a melhoria  é possível. A psicoterapia permite que as pessoas  reconheçam e assumam o sofrimento que o seu comportamento provoca no ambiente onde vivem, ajudando-os a reparar os “sofrimentos causados” e a ganhar qualidade de vida. Nossa personagem Holly teve o seu final feliz após salvar o seu grande companheiro, o gato ao qual nunca deu um nome,  assumindo de uma vez por todas  os seus cuidados. Após inúmeras desilusões , reviu os seus valores , entendeu melhor as suas motivações e pôde desfrutar  do seu grande e verdadeiro amor .

Trabalhamos para que histórias como esta não aconteçam só no cinema e sejam histórias da vida real!

Vera Saicali
Vera SaicaliPsicóloga Clínica
2018-08-24T09:31:51+01:0025 de Agosto, 2018|
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